domingo, setembro 25, 2022

A ROTINA TEM SEU ENCANTO (Sanma No Aji)



“Os filmes de Ozu derivam do que os japoneses chamam de “Mono no aware”, a percepção de que a vida é essencialmente estática e triste. Ele via a natureza humana não só como um equilíbrio entre pais e filhos, mas também entre esperança e desespero, e vida pública e privada.”
Mark Cousins


Fui checar a quantidade de citações sobre Yasujiro Ozu que Mark Cousins faz em seu excelente História do Cinema – Dos Clássicos Mudos ao Cinema Moderno (Martins Fontes, 2013) e é impressionante o número de vezes. E olha que, como o próprio autor diz, Ozu está longe de ser um dos diretores mais influentes do cinema. Até porque ele demorou bastante a ser descoberto no Ocidente. Além do mais, como seus primeiros filmes remontam à década de 1920 e o cinema japonês só começou a ser descortinado para o mundo ocidental com o Leão de Ouro que Akira Kurosawa ganhou com RASHOMON, em 1951, é natural que isso tenha acontecido. Porém, mesmo depois de seu reconhecimento, poucos diretores acompanharam seu estilo singular.

Segundo Cousins, os filmes de Ozu são as verdadeiras obras do classicismo cinematográfico – o cinema supostamente clássico americano, ele chamava de “realismo romântico fechado”, e ele explica muito bem o porquê. Muito disso tem a ver com a contenção das emoções, que, mesmo assim, em muitos filmes explodem e provocam lágrimas, por mais sutil que ele trabalhe com elas.

A força de seus filmes está mais no estilo e muito pouco no enredo: câmera posicionada a um metro do chão, o uso de câmera estática e a ausência de dollies, a opção por abordar a calma cotidiana em famílias ou em escritórios e de não mostrar certos eventos (ou personagens) que supostamente seriam importantes, enfatizando o que ele julga importante, tornando sua obra tão enxuta quanto rica.

Como o diretor se entediava com enredos, é possível perceber, principalmente vendo um filme como A ROTINA TEM SEU ENCANTO (1962), a lapidação da forma de seu cinema. Muitos até afirmam que o filme seria uma espécie de remake de PAI E FILHA (1949), o que faz bastante sentido se considerarmos a sinopse, mas aqui o visual é um pouco diferente, talvez por ser um filme em cores (seu segundo). 

Na “trama” deste e do filme de 1949, viúvo tenta persuadir a filha adulta, que mora com ele, a se casar. O caminho que Ozu faz neste filme é um tanto diferente. Se em PAI E FILHA, a personagem da filha parece ter mais tempo de cena, aqui é o pai o grande protagonista. Vivido por Chishu Ryu, o ator favorito do realizador, o homem de sorriso triste e olhar carinhoso sabe o que significará ficar sozinho depois que a filha se casar. (Ozu fotografar o rosto humano unindo a calma e a tristeza como nenhum outro diretor faz toda a diferença.) A filha também sabe o que significa para o pai ela sair de casa, e é por isso que ela não se esforça para arranjar um casamento. Afinal, dentro daquela estrutura da sociedade tradicional ela se tornou a substituta da mãe nos afazeres domésticos, fazendo as refeições para o pai e o irmão, lavando a roupa, cuidando da limpeza da casa etc.

E por mais que o filme pareça até bem retrógrado nesse sentido, há um bocado de discussão sobre isso, já podendo se ver uma rebeldia e uma conscientização da exploração da mulher dentro desse modelo de família. Mas a rebelião é suave e Ozu, considerado um mestre da conciliação, até faz com que a filha aceite casar com um homem de quem nem gosta muito. A cena em que ela descobre que o favorito dela se mostra já comprometido com outra jovem é bem tocante.

Surpreendi-me em ver quanto tempo passei sem ver um filme de Ozu. Os últimos que vi (os únicos quatro, na verdade) foram nos anos 2013 e 2014. Agora, de posse do livro da Versátil que veio junto com o pack de quatro boxes de cineastas autorais japoneses, li o excelente texto de Filipe Furtado sobre este filme até então inédito (para mim) do diretor e fiquei mais uma vez encantado, ainda que não tanto quanto com seu "filme-irmão", PAI E FILHA, que me arrebatou de uma maneira única.

Este aqui tem um ar mais crepuscular, pois o ator que também está no filme citado está obviamente mais velho e há uma ênfase na solidão dos homens viúvos e na responsabilidade que recai sobre seus ombros em acabar deixando a filha como sua cuidadora para o resto dos seus dias. Aqui Ozu prefere apontar seus holofotes para a figura de homens de meia idade (ou idosos) bem-sucedidos num Japão pós-guerra que tem uma relação ambígua sobre o fato de ser o perdedor no grande conflito.

O que encanta no filme também é o modo como o diretor vai tecendo sua trama através de conversas entre os personagens sobre os destinos de seus filhos e de si mesmos. Também acho curioso como as mulheres não são mostradas como submissas dentro do casamento. Ao contrário, temos um casal com uma mulher quase mandona, e que representa um dos vários momentos de leveza da obra. A própria música do filme chama a atenção para essa leveza, por mais que o amargor no final seja praticamente inevitável.

No mais, tenho aguardado com ansiedade o lançamento no Brasil do livro de Paul Schrader sobre Ozu, Robert Bresson e Carl Theodor Dreyer. O livro se chama Transcendetal Style in Film: Ozu, Bresson and Dreyer.

Filme visto no box O Cinema de Ozu Vol. 3.

+ DOIS FILMES

MEN - FACES DO MEDO (Men)

Estou achando bem interessante essa tendência atual de trazer diversos problemas (políticos, sociais, psicológicos etc.) e usá-los como alegorias dentro do cinema de horror. MEN – FACES DO MEDO (2022), de Alex Garland, é mais um exemplar desse tipo, agora apontando os holofotes para a situação de uma mulher (Jessie Buckley, sempre ótima) que viaja para uma casa de campo bem afastada da cidade de modo a tentar esquecer o trauma do suicídio do marido, que não se conformava com a ideia de se divorciar dela. O mais estranho na cidade é que todos os homens têm o mesmo rosto e nisso o filme aposta na estranheza e a une à tensão, especialmente nas cenas em que a heroína sofre perseguição de sujeitos bem esquisitos. O filme é uma obra que apresenta a misoginia do mundo ao redor da protagonista, podendo vir tanto de uma criança quanto de um padre. Gosto de como o diretor derruba as expectativas de quem aguarda um final próximo do convencional. Além do mais, também achei interessante certas cenas de flashbacks me causarem mais assombro que as passadas no momento presente, talvez por serem de natureza mais realista. Curiosamente, a cena da criança usando a máscara fez eu me lembrar do ótimo slasher COMUNHÃO, de Alfred Sole, mas pode ter sido apenas uma coincidência e não uma citação.

A MULHER REI (The Woman King)

Eis um filme que se destaca mais por sua importância nas questões de representatividade do que por uma boa direção, pelas cenas de ação ou mesmo pelas atuações. Ainda assim, há que se perceber com atenção a movimentação atual para trazer uma conscientização maior por parte da sociedade do papel e da força das mulheres negras, que costumavam (ou costumam ainda?) ser apagadas na história. Além do mais, A MULHER REI (2022), de Gina Prince-Bythewood, diretora de THE OLD GUARD (2020), traz uma questão bem importante, que é a escravização dentro da própria África, advinda de guerras entre tribos e reinos, de modo que os prisioneiros viravam material para ser vendido para os europeus, aqui representados pelos portugueses. O curioso é que, mesmo tendo uma atriz gigante como Viola Davis, quem rouba o protagonismo é a jovem Thuso Mbedu, boa tanto nas cenas dramáticas, quanto nas cenas de ação. Há um outro tema pesado que o filme traz, e que muito fere à personagem de Viola. Eu até gostaria que o filme soubesse trabalhar de maneira mais delicada esse momento (uma determinada conversa entre as duas), pois havia potencial para se chegar a uma cena de levar às lágrimas.

Nenhum comentário: